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Paulo Schor – Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Unifesp e Professor-Chefe do Setor de Óptica Cirúrgica da Escola Paulista de Medicina.
Acabo de voltar de um estágio produtivo na Holanda. Durante um mês acompanhei serviços de retina, córnea e catarata, e principalmente realizei visitas e reuniões com líderes no campo da tecnologia aplicada a saúde.
Uma característica que orgulha os holandeses é o controle e pré-visão. Algumas ações como o investimento em centros de tratamento com protons ou PTC (http://www.hollandptc.nl/en/information) foram planejados por anos, e conflagrados nacionalmente, buscando não somente oferecer uma nova alternativa para o tratamento do câncer, mas também convergir os campos da engenharia, biologia, matemática, medicina, física, etc.
Com investimentos de 146 milhões de dólares, um desse centros, o PTC-Delft, se localiza a 67 km de Amsterdã, dentro da Universidade Tecnológica, e tem seu primeiro paciente agendado para setembro de 2018.  Lá conversei longamente com o prof Marc Van Vulpen, seu diretor, auto descrito como um “conector”.
Professor do MD Anderson, além da Universidade de Amsterdã, Marc valoriza mais os financiamentos recebidos, formação de doutores (PhD) e patentes licenciadas do que artigos publicados. Claro que para se conseguir financiamento e como consequência da formação de PhD(s), há a produção de “papers”, mas a aplicação do conhecimento ecoa nos chamados institutos nacionais (O PTC se enquadra nessa categoria), que variam na forma, porém tem em geral independência acadêmica, forte integração com o sistema industrial, e limitada vocação no ensino e pesquisa básica.
No mesmo campus tecnológico tive outra fascinante conversa com Marcel Reinders (com quase 20 artigos publicados por ano), professor de Bioinformática e coordenador do grupo de Machine Learning que congrega mais de 60 especialistas na área. Perguntava sobre a validade de haver um Departamento de Informática Médica nos dias de hoje, na Universidade, já que cada especialidade começa a desenvolver capacidade própria nesse campo, e chegamos a conclusão de que um núcleo de pesquisa básica na academia, tendo a informática médica como tema, é auto-sustentável, mas as ferramentas (data mining, algoritmos, redes neurais) já estão sendo utilizados em cada setor da atividade, descentralizadamente. A aplicação está sendo naturalmente distribuída, a gênese deve ser cuidada.
O que liga essas conversas é a racionalização, via  otimização, dos cuidados com a saúde da população como um todo. Identificando potencialidades técnicas, habilidades e competências já em curso. Uma visão supra-corporação, centrada na sociedade e lidando com os recursos econômicos disponíveis. A noção do que a universidade pode contribuir (pesquisa básica e ensino fundamentalmente) e como transferir tais conhecimentos para a sociedade (sua aplicação).
Nosso sistema educacional público, de nível superior, foi forjado sobre um tripé indissociável que junta ensino, pesquisa e extensão, e o que foi previsto na Holanda, a partir da mudança econômica, social e tecnológica, é que o mantra pesquisa/ensino/extensão é insuficiente para produzir os avanços na forma e velocidade necessárias.
Nesse cenário de desenvolvimento tecnológico, que demanda transversalidade de competências, e aplicação, foi identificado o “gap” e induzida a formação de pontes, que trouxessem a aplicação, com consciência crítica (conhecimento básico profundo), para a sociedade. Quem sabe não devêssemos nos debruçar sobre esse modelo de “institutos”, como forma de complementar tal transferência tecnológica?
Na mesma direção, porém de forma mais disruptiva do que tal complementaridade, é a experiência com os Médicos Tecnológicos. Há quase uma década eles iniciaram a formação de profissionais “poliglotas”, que “dialogam” com máquinas. Existe certa semelhança, a primeira vista, com nossos tecnólogos, que entendem um idioma e produzem os diálogos, mas tal formação no Brasil avançou pouco em áreas estratégicas como a saúde, mantendo o aspecto técnico (ações repetitivas, sem interferência profunda no processo) como característica.
O anseio de que os cursos tecnológicos avançassem em direção a autonomia e inserção do ser humano na conversa, foram de certa maneira, atrasados pela cultura médico-cêntrica que vivemos. Ocorre que aqui também (e principalmente) o encarecimento da saúde demanda nova gestão dos processos, distribuindo funções, e maximizando competências.
Nesse cenário encontramos a experiência dos Technical Physicians (ou Medicos Tecnologicos), que cursam Tecnical Medicine (www.utwente.nl/en/tm/), e tem a abreviatura de TD (diferenciando dos Medical Doctors, ou MD). Eles fazem exatamente a ponte entre ciência & tecnologia e prática médica.
Aprendem por três anos anatomia, fisiologia e patologia em ambientes imersivos, junto com eletrônica, química e física aplicadas ao corpo humano. Nos outros três anos de formação escolhem o ramo de imagem & intervenção ou sintomas & reabilitação. Desenvolvem novas estratégias intervencionistas, equipamentos médicos, recolhem sinais e sintomas, implementam algoritmos de diagnósticos, reabilitam e manipulam dados.
Existe um óbvio sombreamento das competências dos TDs com o que hoje está distribuído entre técnicos, enfermeiros, MDs e tecnologos, e o entendimento supra-corporação é mais do que necessário para a integração desses saberes e funções. Como em inúmeros outros campos, um “pacto” pela sociedade e paciente, tem de ser patrocinado pelo ente público (estado), que esperaríamos ser capaz de prever e induzir sem o viés político ou financeiro (a favor desse ou daquele sindicato) essa organização mais lógica e sustentável.
Sem a visão macro-estrutural, iremos manter e ampliar demandas específicas (que alguns chamam de privilégios) e pagar um preço cada vez mais caro pelo mesmo produto final, o bem-estar do ser humano e da sociedade. Precisamos parar de segregar, “departamentalizar”, isolar as competências. Engenheiros criam soluções que nem sempre são necessárias do ponto de vista do paciente. Médicos aplicam soluções que poderiam ser executadas com menor tempo e custo, por profissionais treinados (ou pelo próprio paciente). Tecnólogos são subutilizados na manipulação repetitiva de protocolos, sem que interfiram e melhores os algoritmos das empresas produtoras.
O contemporâneo chama pela humildade e coragem. Ou percebemos que mudar não é acabar, e enxergamos um movimento harmonioso e conjunto, ou chegaremos no mesmo ponto, mas muito mais machucados que o necessário.

Fonte: Universo Visual

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