Tempo de leitura: 4 minutos
Fábio Morais – Oftalmologista do Hospital de Olhos de Sergipe; Pós graduando nível Doutorado Unifesp
Uveíte é um termo geral que descreve um grupo heterogêneo de doenças inflamatórias podendo levar à danos aos tecidos oculares de forma permanente, ocasionando perda severa da visão.  Tem como possíveis causas: ataque do sistema imunológico do próprio corpo (autoimunidade); infecções (Toxoplasmose, Toxocaríase, Sífilis, Tuberculose etc); tumores que ocorrem dentro do olho ou em outras partes do corpo; traumas no olho;  toxinas que podem penetrar no olho.
Além da dificuldade inerente desta subárea da oftalmologia (considerada por muitos como a mais desafiadora), nós oftalmologistas que lidamos com as uveítes no nosso dia a dia temos sido surpreendidos com dificuldades no diagnóstico e tratamento dos nossos pacientes ocasionados por problemas exta-consultório. Falaremos a seguir sobre quatro pontos ocorridos ao longo dos últimos anos.
1. O primeiro fato ocorrido nos Estados Unidos vale a pena ser citado, apesar de não ter afetado o mercado brasileiro.  A pirimetamina, vendida sob o nome comercial de Daraprim, é um medicamento usado com a Sulfadiazina + ácido Folínico e Corticóide para tratar a toxoplasmose (principal causa de Uveíte no Brasil). Chamamos esta associação de drogas de “Esquema clássico” e corresponde ao tratamento de escolha por boa parte dos uveólogos para a Toxoplasmose Ocular. A pirimetamina foi descoberta em 1952 e entrou em uso médico em 1953. Esta droga se encontra na Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial da Saúde. Em agosto de 2015, os direitos de comercialização da Daraprim foram comprados pela Turing Pharmaceuticals, e a imprensa americana revelou que, nos Estados Unidos, o preço deste medicamento, passaria de US$ 13,50 para US$ 750 por decisão do presidente da farmacêutica Turing, Martin Shkreli. Nos Estados Unidos em 2015, esta droga não estava disponível como medicamento genérico. O anúncio provocou revolta e Shkreli se tornou a pessoa mais odiada da internet ao subir o preço de um remédio em 5.000% do dia para a noite.  Shkreli foi acusado em um tribunal, e em 2018, foi condenado a sete anos de prisão + US$ 7,4 milhões em multas. Felizmente, os direitos de exploração do Daraprim, adquiridos por Shkreli valiam apenas para os Estados Unidos, portanto a medida, não afetou o preço no Brasil, onde uma caixa de 100 comprimidos é vendida por, no máximo, R$ 8. No país, quem detém os direitos de uso da marca Daraprim é a empresa Farmoquímica, que não tem nenhuma relação com a Turing. No Brasil, todo aumento de preço tem que ser aprovado pelo governo através da CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos). Apesar disso, encontrar as drogas do Esquema clássico tem sido um problema em várias regiões do país.
2. A Uveíte por Tuberculose é uma realidade no Brasil e demais países de terceiro mundo. Esta doença tem diagnóstico difícil e muitas vezes considerado de exclusão. O teste tuberculínico ou PPD é um exame subcutâneo em que uma fração da bactéria causadora da tuberculose é injetada no braço. Ele tem sido uma importante ferramenta no diagnóstico desses pacientes, apesar de que somente o PPD não ser suficiente para confirmar ou excluir a doença. O Brasil enfrentou, a partir de 2015, a falta generalizada deste teste. O problema ocorreu porque o laboratório produtor dos kits, na Dinamarca (Statens Serum Institut), foi vendido e interrompeu a fabricação. Esse não foi um problema do governo brasileiro. Havia dinheiro para comprar, mas não quem vendesse. Nos Estados Unidos, o PPD foi substituído pelo Igra (ensaios de detecção de interferon gama em sangue), exame bem mais caro, o que dificulta a compra em larga escala aqui no Brasil. Esse exame está disponível em laboratórios privados. Este problema específico do PPD tem sido gradualmente solucionado e já observamos um retorno parcial do PPD, sendo que a sua utilização tem seguido critérios mais rigorosos.
3. O recrudescimento da Sífilis é um fenômeno observado no mundo todo e consequentemente os casos de Sífilis ocular tem aumentado de forma significativa nos nossos consultórios. Sabemos que a Sífilis ocular (considerada como Neurossífilis) tem como tratamento padrão a Penicilina Cristalina.  A partir de 2014, percebemos uma falta generalizada da penicilina tanto nas redes pública e privada. A penicilina, em suas várias formas, faz parte de um grupo de medicamentos vulneráveis a crises de abastecimento, são antigos, e suas patentes já expiraram. Como são baratos, poucas empresas têm interesse em produzi-los. A maior parte da matéria-prima é fabricada em algumas poucas empresas na China. Essa dificuldade surgiu por problemas em fornecedores da China de um insumo necessário para a fabricar a droga. Felizmente já observamos um gradual retorno da Penicilina.
4. Para finalizar, mais recentemente no princípio de 2019, a Allergan Produtos Farmacêuticos Ltda, informou, através de comunicado oficial, a descontinuação definitiva da fabricação do produto ATROPINA 0,5%/ ATROPINA 1%, devido a problemas no fornecedor do princípio ativo que decidiu transferir a produção da Alemanha para a Índia, o que impactaria em uma série de processos regulatórios e de qualidade do produto. Entendendo a importância do produto Atropina (sulfato de atropina 0,5% e 1,0%) para a Oftalmologia e para os pacientes brasileiros, a Allergan decidiu retomar a produção deste medicamento.  Este colírio é uma importante arma no tratamento das uveítes anteriores mais agressivas prevenindo aderências e relaxando a musculatura ciliar. Neste caso vale a pena citar o grande esforço da SBU (Sociedade Brasileira de Uveítes) juntamente com o CBO (Conselho Brasileiro de Oftalmolgia) na tentativa de solucionar este problema.
A adversidade fez procurarmos alternativas. Com a falta do PPD, aprendemos mais sobre o exame Igra (Interferon Gama Release Assay), apesar do custo elevado para os padrões brasileiros; na falta da Penicilina, usamos o Rocefin (ceftriaxona) com resultados ainda inferiores ao da Penicilina Cristalina, inclusive com publicações científicas de grupos nacionais sobre estes temas. Portanto, cuidar de pacientes com uveíte não é uma tarefa fácil. Falta-lhe o glamour e a rápida satisfação da cirurgia refrativa ou até mesmo catarata. Mas se falta glamour sobra em desafio e a gratificação adiada é enorme. 
Fontes: Ministério da Saúde, Organização Mundial da Saúde, Revista Época, Diagnosis and Treatment of Uveitis (Foster &Vitale).

Fonte: Universo Visual

Compartilhe esse post