Myrna Serapião dos Santos – Doutora pela UNIFESP e Pós-Doutorado pela Università Campos Bio-Medico de Roma- Itália; Ex-Chefe e membro do Setor de Doenças Externas Oculares e Córnea da UNIFESP; Preceptora do Curso de Residência em Oftalmologia do HSPE e Diretora Clínica do GRUPO H.Olhos
Alergia ocular é o termo utilizado para descrever um grupo altamente prevalente de doenças heterogêneas e frequentemente recorrentes da superfície ocular, que afeta 20% da população em todo o mundo. Tipicamente associada à reação de hipersensibilidade do tipo I ou mediada pela imunoglobulina E (IgE), também é associada à reação de hipersensibilidade do tipo IV, nos casos mais graves.
Classicamente, o termo alergia ocular engloba quatro formas clínicas distintas: conjuntivite alérgica sazonal (CAS) ou aguda, conjuntivite alérgica perene (CAP) ou crônica, ceratoconjuntivite primaveril (CCP), ceratoconjuntivite atópica (CCA). Alguns grupos incluem ainda a conjuntivite papilar gigante (CPG) e a blefaroconjuntivite de contato (BCC) nesta classificação, apesar de terem fisiopatogenia distinta.
CAS e CAP são causadas exclusivamente pela reação de hipersensibilidade Tipo I (IgE-mediada). Geralmente, o aparecimento ocorre de forma aguda ou subaguda, sendo marcantes em determinadas épocas do ano nas CAS. São formas brandas de conjuntivite e normalmente não há acometimento corneano.
CCP e CCA são formas mais severas de alergia ocular, que por serem crônicas podem apresentar complicações devido ao comprometimento corneano, podendo levar à perda visual. Nas patogêneses das ceratoconjuntivites estão envolvidas, além da reação de reação de hipersensibilidade do tipo I (IgE mediada), a tipo IV (hipersensibilidade tardia).
FORMAS CLÍNICAS
Conjuntivites Sazonal e Perene
A conjuntivite alérgica sazonal (CAS), também denominada de rinoconjuntivite alérgica ou febre do feno, e a conjuntivite alérgica perene (CAP), são as formas mais comuns de alergia ocular, correspondendo a aproximadamente 80% dos casos. História familiar e pessoal de atopia, especialmente associação a rinite e asma brônquica, é frequentemente relatada pelos pacientes.
Crises sazonais de prurido, hiperemia conjuntival, lacrimejamento, quemose (edema conjuntival), edema palpebral e hipertrofia papilar (micropapilas) na conjuntiva palpebral superior caracterizam o quadro clínico da CAS. Uma forma mais branda e perene dos sintomas é vista nos pacientes portadores da forma perene (CAP). Os alérgenos mais comumente envolvidos nas conjuntivites alérgicas são: pólen, ácaro e alérgenos presentes no pelo do cachorro e na saliva do gato.
Mas as conjuntivites alérgicas apresentam boa resposta ao tratamento tópico convencional e são de curso benigno, uma vez que não comprometem a córnea.
Ceratoconjuntivite Primaveril ou Vernal
A ceratoconjuntivite primaveril (CCP) é uma forma rara e grave de alergia ocular, na qual cerca de 80% dos pacientes se encontram na primeira década de vida, com leve predomínio no sexo masculino. Associação a outras atopias é detectada em cerca de 50% dos pacientes com CCP. Na maioria dos casos, a doença é autolimitada, tendendo a resolver após a puberdade. Cursa com relativa sazonalidade, com crises de exacerbações nos meses quentes do ano e em regiões de clima quente e seco.
Clinicamente, a CCP pode ser classificada em três tipos: palpebral, límbica e mista. A forma palpebral cursa com hipertrofia papilar em conjuntiva palpebral superior, com a presença de papilas gigantes; a forma límbica caracteriza-se pela presença de espessamento, hipertrofia e/ou nódulos de Horner-Trantas, que representam acúmulos de eosinófilos e células epiteliais degeneradas, no limbo; e na forma mista observa-se a presença das papilas gigantes e do comprometimento límbico concomitante. Comprometimento da córnea pode ser observado, variando desde ceratite ponteada, defeitos epiteliais, até a formação da úlcera em escudo. Estas ulcerações geralmente são ovaladas, localizadas na metade superior da córnea, com depósito fibrinoso superficial. Aumento da incidência de ceratocone é observado nos pacientes com CCP, provavelmente relacionado ao prurido crônico.
Ceratoconjuntivite atópica
A ceratoconjuntivite atópica (CCA) é uma forma também grave e crônica de alergia ocular, que incide mais frequentemente no sexo masculino, da terceira à quinta década de vida. Dermatite atópica encontrasse associada à CCA em quase 100% dos caosos,
Além de prurido, lacrimejamento, fotofobia, hiperemia e edema conjuntival, os pacientes com CCA podem cursar com hiperplasia gelatinosa do limbo, nódulos de Horner-Trantas e hipertrofia papilar mais proeminente na conjuntiva tarsal inferior. Frequentemente ocorre fibrose subepitelial na conjuntiva, com perda de células caliciformes, levando a olho seco secundário. Também pode cursar com cicatrizes e retrações palpebrais e perda dos cílios, desenvolvendo, nos casos mais graves, quadro de ceratoconjuntivite cicatricial, podendo resultar em redução da acuidade visual por defeitos epiteliais, deficiência de limbo e opacidade da córnea. Assim como na CCP, observa-se um aumento de incidência de ceratocone.
TRATAMENTO
O tratamento dos diferentes tipos de alergia ocular visa a eliminação dos alérgenos, a modulação do sistema imune e a inibição farmacológica dos mediadores químicos envolvidos na resposta imunoalérgica.
A grande maioria dos casos de alergia ocular apresenta boa resposta ao tratamento antialérgico tópico convencional e bom prognóstico visual. Entretanto, uma parcela das ceratoconjuntivites crônicas apresenta resposta insatisfatória ao tratamento convencional e difícil controle da inflamação alérgica, aumentando o risco de comprometimento visual. São considerados fatores de mau prognóstico: história familiar importante de alergias, ambos os genitores alérgicos, início precoce do quadro alérgico (< 4 anos), múltiplas alergias (dermatite) e úlceras em escudo de repetição.
Tratamento de Primeira Linha
O tratamento de primeira linha das da alergia ocular compreende o uso de medidas preventivas, visando o afastamento do indivíduo de agentes desencadeantes específicos e inespecíficos da alergia. Compressas geladas e uso de lágrimas artificiais são indicados para o alívio dos sintomas, especialmente nas formas leves de alergia. Acompanhamento com alergista é medida mandatória para todas a formas de alergia ocular.
Tratamento de Segunda Linha
Drogas de Múltipla Ação: As drogas de múltipla ação (DMA), uma combinação de anti-histamínicos, estabilizadores de membranas de mastócitos, com propriedades anti-inflamatórias, são os antialérgicos tópicos mais utilizados na atualidade. A vantagem desta classe de antialérgicos tópicos consiste na rapidez do alívio sintomático na fase aguda, pelo bloqueio de receptores de histamina, associado ao efeito estabilizador de membrana de mastócitos, que previne a recorrência e a cronificação do quadro alérgico, além de ação indireta sobre os eosinófilos, importantes células efetoras da fase tardia da resposta alérgica52,53. Devem ser utilizados nas formas agudas e crônicas de alergia ocular. Colírio de Olopatadina 0,1 ou 0,2%, Alcaftadina 0,25%, Epinastina, 0,05% e Cetotifeno 0,25%, são as DMA mais utilizados.
Tratamento de Terceira Linha
Corticosteróides tópicos: Cursos curtos de corticosteroide tópico estão indicados nas fases de agudização das ceratoconjuntivites (ceratite, úlcera em escudo, nódulos de Horner-Trantas). Os efeitos colaterais da corticoterapia tópica, tais como glaucoma, catarata, dificuldade de cicatrização, predisposição a infecções, devem ser considerados no seu emprego.
Imunomoduladores: Imunomodulação tópica com tacrolimus 0,03 % colírio ou pomada tem-se mostrado efetiva na supressão da inflamação alérgica a longo prazo, nos casos de CC alérgicas, reduzindo a necessidade de corticosteroide tópico e levando ao controle da doença. Concentrações mais altas (0,1%) podem ser propostas nos casos de difícil controle. Ciclosporina A colírio com concentrações que variam de 0,05 a 2% constitui outra opção vigência de indicação de imunomodulação tópica.
Injeção Supratarsal de Corticosteróides: Em pacientes com quadros mais graves de CC alérgica, com papilas gigantes, envolvimento límbico severo ou úlceras corneanas de repetição, o tratamento convencional muitas vezes é pouco efetivo. Uma opção para o tratamento destes casos é a injeção supratarsal de corticosteróides. Resultados satisfatórios poder ser alcançados com injeções supratarsais de triamcinolona ou dexametasona, com efetiva supressão, ainda que transitória, da inflamação alérgica nas CC.
Tratamento de Quarta Linha
Tratamento Cirúrgico: Em casos de ceratite grave e/ou úlceras de repetição resistentes ao tratamento convencional, tratamento cirúrgico pode ser empregado, com a exérese das papilas gigantes associada ou não a enxertos, como de conjuntiva, mucosa oral ou membrana amniótica, além da criodestruição das papilas gigantes.
Tratamento Sistêmico
Nos casos extremos de CC alérgica, resistentes às formas convencionais de tratamento e na vigência de outros quadros de atopia de difícil controle, o tratamento deve ser feito por equipe multidisciplinar, sendo fundamental o acompanhamento do alergista.
Ciclos curtos de corticosteróide sistêmico, considerando e controlando a possibilidade de efeitos colaterais com o seu uso, podem ser empregados.
Imunossupressão sistêmica pode ser empregada, especialmente nos casos extremos na vigência de múltiplas alergias de difícil controle, com resultados satisfatórios. Ciclosporina A tem sido a droga mais utilizada nestes casos. Tacrolimus (FK506) também tem sido utilizado, com bons resultados, na supressão da inflamação imuno-alérgica. Controles clínicos e laboratoriais devem ser feitos mensalmente, pelo risco de graves efeitos colaterais, como nefrotoxicidade.
Tratamentos Adjuvantes
Modulação do sistema imunológico pode ser realizada pela imunoterapia alérgeno-específica ou com o uso de drogas. A imunoterapia têm-se mostrado eficaz e segura como adjuvante no tratamento das alergias oculares, especialmente as conjuntivites alérgicas. Entretanto, não há evidência da sua eficácia nos casos mais graves de CC alérgica.
Perspectivas
Anticorpos Monoclonais: Recentemente, novas drogas estão sendo utilizadas para o controle das doenças alérgicas e poderão ser uma alternativa também para o controle das alergias oculares. O anticorpo monoclonal anti-IgE Omalizumabe (Xolair Genentech®), indicado para o tratamento da asma e urticária crônica, tem demonstrado também atuação no controle de CC alérgicas graves.
Outro anticorpo monoclonal com possível emprego no futuro para o tratamento das CC alérgicas de difícil controle, considerando o seu mecanismo de ação, é o anti-IL 4 Dupilumabe (Dupixent Sanofi®), indicado para a dermatite atópica.
CONCLUSÕES
A maioria dos casos de alergia ocular apresenta boa resposta ao tratamento antialérgico convencional. Nos casos de ceratoconjuntivites alérgicas crônicas de difícil controle e resposta insatisfatória ao tratamento convencional, deve-se considerar: acompanhamento com alergista, para controle das outras atopias; uso imunomoduladores tópicos em concentrações mais altas; injeção supratarsal de triancinolona; além do tratamento cirúrgico. Para os casos extremos, considerar o emprego de imunossupressão sistêmica ou anticorpos monoclonais específicos.
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Fonte: Universo Visual