Harley E. A. Bicas – Professor Titular Senior – Oftalmologia da F.M.R.P.U.S.P. e Membro Vitalício do C.D.G. do CBO
Reconhecidamente, o procedimento mais comum em Oftalmologia é o das prescrições ópticas. Com elas se pretende garantir a melhor nitidezda imagem e a melhor reprodução das formas de um objeto sobre a retina de cada olho, sem desconfortos (geralmente decorrentes do uso da acomodação). Entre essas prescrições, as mais complexas são as das anisometropias quando, além desses objetivos, também se requero adequado ajustamento dos tamanhos dessas imagens. A escolha entre a qualidade da correção óptica a ser então usada (lentes de contato ou óculos) pode ser boa para a obtenção da nitidez e forma das imagens, além de suas adequações para objetos situados a diferentes distâncias (ajustamento pela acomodação suscitada em cada olho) mas errada para a dos tamanhos dessas imagens em cada um dos olhos (anisiconia), ou vice-versa.
Talvez, por antítese, torne-se então costumeiro pensar que quando as medidas da refração ocular forem idênticas nos dois olhos (isometropia) tais preocupações não devam persistir. Aliás, é surpreendente que tal questão deixe de ser abordada nos livros de refração ocular e que o próprio termo (isometropia) neles não apareça. Em sequência, os principais elementos referentes a essas questões serão examinados, para elucidá-las.
O estado refratométrico do olho, isto é, a chamada “refração ocular” (V) resulta da adequação entre duas distâncias: a focal imagem do sistema óptico ocular (fi) e a do eixo longitudinal (anteroposterior) do olho (a) ou, melhor dizendo, de suas recíprocas dióptricas, respectivamente, E ( = n / fi) e R (= n / a), isto é, V = R E, em que n é uma constante, o índice de refração do interior do olho, o humor aquoso e o corpo vítreo |(n = 1,336). Assim, escreve-se:
V = R E =(n / a) (n / fi) = n [(1 / a) (1 / fi)] (F. I)
De quaisquer combinações entre os valores de E e de R podem resultar resultados positivos (hipermetropias, quando R > E), negativos (miopias, quando R < E) ou neutros (emetropia, quando R = E). Por exemplo, para um olho emétrope padrão (E = R = 60 D), f1= a = 1336/60 = 22,267 mm. Também se qualifica o tipo de ametropia como axial (quando a ametropia se deve a erro de a e não de fi), refracional (quando a ametropia se deve a erro de fie não de a) ou mista (quando por erros desses dois fatores). Este é um conceito clássico, mas que pode conduzir a conclusões errôneas, como será visto.
De qualquer modo, valores idênticos da “refração ocular” (V) nos dois olhos podem resultar de diferentes combinações de a e fi em cada um deles. Ou seja, para uma “simples” emetropia resultam infinitas possibilidades (figura 1). Obviamente, isso também se aplica a quaisquer outras isometropias (existem infinitas possibilidades de composição das miopias de – 1,5 D sf em cada olho).
FIGURA 1: Representações de isoemetropias por compensações de maior poder dióptrico e menor comprimento axial (à esquerda); poder dióptrico e comprimento axial padrões (centro); e menor poder dióptrico e maior comprimento axial (à direita).
A)Acomodação nas isometropias
Nas isometropias, como o estado refratométrico do olho direito (VD) é perfeitamente idêntico ao do esquerdo (VE) e, pois, de modo esperado, como as lentes eventualmente prescritas são também iguais (LD = LE), as respectivas acomodações (AD e AE) para uma determinada distância (d, em metros) são as mesmas. De fato:
AD = VD + (1 / d) + LD e AE = VE + (1 / d) + LE
B)Tamanho das imagens
Já os tamanhos das imagens de um objeto em cada uma das retinas (tD e tE) dependem do tamanho angular desse objeto. O tamanho angular (TA) com que um objeto seja visualmente percebido é dado pela relação entre o tamanho real desse objeto (TR) e a distância (d) dele ao olho (isto é, ao seu ponto nodal objeto, No). Portanto, quando o objeto for observado a uma certa distância, por diferentes olhos, seu tamanho angular será o mesmo para qualquer um deles. Esse ângulo (TA) é mantido a partir do ponto nodal imagem do olho (Ni), assim o tamanho da imagem formada sobre a respectiva retina (Fi) dependerá da distância entre Ni e Fi, isto é, será específica para a medida NiFi de cada olho:
TR / d = TA = tD / (NiFi)D
A posição dos pontos nodais objeto (No) e imagem (Ni) em um sistema óptico é dada, respectivamente, pelas distâncias focais imagem (fi) a partir do ponto focal objeto (Fo) e pela distância focal objeto (fo) a partir do ponto focal imagem (Fi)1,2 (figura 2).
FIGURA 2: Acima, posições de pontos cardeais, conforme valores de um sistema óptico ocular padrão, calculados por Gullstrand2,3 : focal objeto (Fo), focal imagem (Fi), principal objeto (Po) e principal imagem (Pi) e as correspondentes distâncias, focal objeto (fo = FoPo) e focal imagem (fi = PiFi), pelas quais são determinadas (abaixo) as posições dos pontos: nodal objeto (No) e nodal imagem (Ni). Os pontos A e R representam as posições do vértice anterior da córnea (A, a origem do sistema de medidas) e da fóvea (retina). Note-se que FoA + APo = fo , APi + PiFi (= fi) = AR = ANi + NiFi (= NiR).
Assim, a posição de Ni (ponto nodal imagem) de um olho cuja imagem estiver ajustada sobre a retina é definida pela distância NiFi = fo, medida a partir da retina (Fi). E como (1/fo) = (n/fi) = E (poder dióptrico equivalente do sistema óptico), resulta que o tamanho da imagem de um objeto (t) de tamanho angular TA formada sobre a retina de tal olho é mera expressão, inversamente proporcional, do valor do poder dióptrico E desse olho (cuja imagem é “ajustada” (leia-se “acomodada”) sobre a retina:
TA = t / fo = t . E
Similarmente, para outro olho de poder equivalente E :
TA = t / ( fo) = t . E
Portanto, a relação entre os tamanhos das imagens dos olhos direito (tD) e esquerdo (tE) é, simplesmente dada pela relação inversa dos respectivos valores dióptricos dos sistemas ópticos (ED e EE) “ajustados”:
tD . ED = tE . EE ! tD / tE = EE / ED
Também se pode dispensar o mecanismo de “ajustamento” da imagem à retina (acomodação), corrigindo-se o eventual erro óptico do sistema óptico ocular (V) com lentes (de contato, ou convencionais). Nesse caso, faz-se que R = n/a = n/fi = E, resultando que a = fi = n/E. Assim, em olhos (já) emétropes ou emetropizados, a relação de tamanhos das imagens dos olhos direito (tD) e esquerdo (tE) é dada pela relação inversa das respectivas distâncias focais imagens (fiD e fiE), ou direta dos respectivos comprimentos axiais longitudinais (aD e aE) (figura 3).
tD / tE = EE / ED = aD / aE (F. II)
FIGURA 3: Representações esquemáticas de olhos emétropes, ou emetropizados (V = R – E = 0) por compensação de valores dióptricos de E (sistema óptico ocular) = n/fi e de R (comprimento axial longitudinal do olho) = n/a, mostrados como iguais a 50 D (acima), 60 D (no centro) e 70 D (abaixo). As distâncias focais imagens (fi) são dadas como (em milímetros) fi = (1336 / E) = (1336/R) = a; e as distâncias focais objetos (fo) como fo = 1000 / E. A distância de cada ponto nodal imagem (Ni) ao respectivo plano principal imagem (P) é dada pela soma (fi + fo). Note-se que o tamanho angular com que o objeto é percebido (ângulo entre a linha pontilhada preta e a linha cheia azul) é o mesmo para os três casos, mas que a imagem sobre a retina é maior no olho em que o poder dióptrico equivalente (E) é menor (acima: comprimento longitudinal axial, a, maior); e menor quando E é maior (abaixo, a menor).
Tamanhos de imagens em função de tamanhos do olho (emétrope, ou emetropizado) podem, então, ser simplesmente relacionados (figura 4). Ora, a relação de tamanho das imagens em cada um dos olhos é muito importante, pois quando chega a 5% a anisiconia resultante impede a fusão binocular (cortical) das imagens. Por essa figura, note-se que variações acima desse limite (5 %) podem se dar com variações de tamanho abaixo de 1 mm, em olhos com tamanhos axiais menores do que 20 mm (equivalendo a tamanhos dióptricos acima de 66,8 D) ou abaixo de 1,2 mm (equivalendo a tamanhos dióptricos acima de 55,67 D) em olhos com tamanhos axiais menores do que 24 mm (equivalentemente a olhos com tamanhos dióptricos 55,67 D). Ou seja, para a grande maioria dos olhos (tamanhos axiais entre 20 e 24 mm), variações relativamente pequenas (entre 1,0 e 1,2 mm) são suficientes para a produção de aisiconias de 5% ou maiores (“intoleráveis”).
FIGURA 4: Relação (percentual) entre o tamanho das imagens (eixo das ordenadas) em função do tamanho de um olho (eixo das abscissas) quando esse tamanho variar por certa quantidade linear (linhas azuis). Por exemplo, o ponto P1 significa que para um olho de tamanho 20 mm (ou, equivalentemente, 1336/20 = 66,8 D) comparado a outro 1 mm maior (21 mm), ou menor (19 mm), a variação de tamanho das imagens será de 5 % para mais (21/20 = 1,05) ou para menos (19/20 = 0,95). O ponto P2 significa que para um olho de tamanho 24 mm (ou, equivalentemente, 55,67 D) comparado a outro 1,2 mm maior (25,2 mm) ou menor (22,8 mm), a variação de tamanho das imagens será, também, de 5 % para mais (25,2/24 = 1,05) ou para menos (22,8/24 = 0,95). O ponto P3 significa que para um olho de tamanho 60 D (ou, equivalentemente, 22,27 mm) comparado a outro 1,4 mm maior (23,67 mm) ou menor (20,87 mm), a variação do tamanho das imagens será de 6,29% para mais (23,67/22,27 = 1,0629), ou para menos (20,87/22,27 = 0,9371).
A seguir, examinam-se isometropias de diferentes tipos, determinando-se limites de anisiconia suportável, isto é, condições em que tD / tE = 1,05 (ou 0,95).
1)ISOEMETROPIAS
Para um olho tomado como referência (por exemplo, o direito) de comprimento axial (aD) grande (valor dióptrico, ED, pequeno), por exemplo, ED = 50 D (e aD = 1336/50 = 26,72 mm) a relação correspondente a 5% seria 1,05 = EE / 50, portanto EE = 52,5 D (e aE = 1336/52,5 = 25,448 mm), isto é, diferenças de 2,5 D nos valores dióptricos dos respectivos sistemas ópticos dos dois olhos; ou 1,272 mm em seu comprimentos axiais.
Já para um comprimento axial do olho referencial (aD) pequeno (valor dióptrico ED grande), por exemplo ED = 70 D (e aD = 1336/70 = 19,086 mm), a relação correspondente a 5% seria 1,05 = EE / 70, portanto EE = 73,5 D (e aE = 1336/73,5 = 18,177 mm), isto é, diferenças de 3,5 D entre os valores dióptricos dos respectivos sistemas ópticos, ou 0,909 mm nos respectivos comprimentos axiais.
Para um olho referencial de valores “normais” (ED = 60 D, aD = 22,267 mm), as diferenças para a produção de anisiconia seriam 3,0 D e 1,060.
2)CORREÇÕES DE ANISOMETROPIAS
Aparentemente, a determinação das composições de emetropias (e, ou de ametropias em geral) é puramente acadêmica, mas simples exemplos práticos podem elucidar a importância dessas caracterizações. Por exemplo:
a) Suponha-se o olho referencial (OD) como emétrope “padrão” (isto é, VD = RD – ED = 60 – 60 = 0) e o OE como com EE = 60 D (e, portanto, VE = RE – EE = 57 60 = 3 D). Ou como VE = RE – EE = 63 – 60 = +3 D. Essas anisometropias (respectivamente – 3 D e + 3 D) deverão ser classicamente definidas como axiais (os erros estão nos respectivos valores de RE) e as correções com lentes convencionais (recomendadas nas correções das anisometropias axiais) estarão corretas. Mas tais correções ópticas (anulação das respectivas anisometropias, por lentes convencionais) seriam inadequadas, criando anisiconias, se o OD (emétrope) fosse VD = RD – ED = 57 – 57 = 0 no primeiro caso (anisomiopia) ou VD = RD – ED = 63 – 63 = 0, no segundo (anisohipermetropia).
b) Reciprocamente, suponha-se o olho referencial (OD) como emétrope “padrão” (isto é, VD = RD – ED = 60 – 60 = 0) e o OE como com EE = 63 D (e, portanto, VE = RE EE = 60 – 63 = -3 D). Ou como EE = 57 D (e, portanto, VE = RE – EE = 60 – 57 = +3 D). Essas anisometropias (respectivamente – 3 D e + 3 D) são refracionais ou refringenciais (os erros estão nos respectivos valores de EE) e as correções com lentes de contato (recomendadas nas correções das anisometropias refringenciais) estarão corretas. Mas seriam inadequadas, criando anisiconias, se o OD (emétrope) fosse VD = RD ED = 63 – 63 = 0 no primeiro caso (anisomiopia) e VD = RD – ED = 57 – 57 = 0, no segundo (anisohipermetropia).
Obviamente, tanto lentes de contato quanto óculos convencionais agem efetivamente sobre o valor do sistema óptico do olho (E), garantindo a nitidez das imagens sobre as respectivas retinas. Mas, para raciocínios sobre tamanhos de imagens e, pois, sobre a correção de anisiconias, um método mnemônico simples é o de admitir que as lentes de contato modifiquem o valor de E, enquanto os óculos modificam o de R, de modo a equalizá-los aos da emetropia correspondente…
3)CORREÇÕES DE ISOMETROPIAS
De fato, suponhamos as miopias já referidas de – 3 D, uma no olho direito (axial), outra no olho esquerdo (refracional), isto é:
VD (= – 3) = RD (= 57) – ED (= 60) (axial)
VE (= – 3) = RE (= 60) – EE (= 63) (refracional)
Com a correção por lentes de contato (sobre valores de E), as correções ficam (figura 5):