O azul toma conta de Itabuna, município do sul da Bahia, durante o mês de novembro para alertar a população sobre a importância dos cuidados de prevenção e controle do diabetes – doença que atinge ao menos 12,5 milhões de pessoas no Brasil, de acordo com a Sociedade Brasileira de Diabetes.
Em Itabuna, o movimento é liderado pela ONG Unidos pelo Diabetes, presidida pelo oftalmologista Dr. Rafael Ernane Almeida Andrade, que realiza mutirões de atendimento a pacientes diabéticos e treinamento de profissionais da saúde. Conversamos com o Dr. Rafael Andrade para conhecer a trajetória da ONG, as barreiras que dificultam o combate ao diabetes e o uso da telemedicina no diagnóstico da doença.
De projeto a movimento
“A ONG é fruto do projeto, não o contrário. O projeto nasce lá em 2004, a partir da experiência vivida nos mutirões do olho diabético que existia no Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo, onde eu fiz minha especialização e doutorado”, declara Rafael Andrade que, ao voltar para Itabuna (BA), realizou um mutirão piloto com o auxílio de três colegas retinólogos. A iniciativa surgiu quando percebeu que os pacientes chegavam já em estado avançado de diabetes em seu consultório. Por coincidência, o primeiro evento aconteceu em novembro, mês que três anos depois, em 2007, seria instituído no Brasil como mês de combate ao diabetes.
Os mutirões do diabetes em Itabuna continuaram acontecendo anualmente, sempre em novembro. Em 2006, passaram a oferecer mais uma especialidade, a angiologia para tratamento do pé diabético e, em 2007, a nefrologia para os cuidados do rim. “A gente percebeu que o olho é um biomarcador importante de gravidade, quanto mais grave o olho, mais chances de ter alterações em outros órgãos”, explica o oftalmologista.
Em 2007, com a instituição do novembro azul, o projeto passou a incorporar a cor e a cidade se mobilizou para iluminar prédios, monumentos e praças com o mesmo tom. Além disso, as atividades do mutirão saíram do hospital, como conta o Dr. Rafael Andrade: “Fomos para a praça pública na frente do hospital e colocamos vários estandes de nutrição, direito dos diabéticos, educação física, psicologia, entre outras especialidades. Virou um mutirão não só multidisciplinar como multiprofissional.”
Em 2004, o projeto havia atendido 199 pacientes. Em 2010, foram entre 1.500 e 2 mil pessoas atendidas em uma manhã. Com o passar dos anos, esse número foi aumentando, além do despertar o interesse de outros profissionais em entender a metodologia para replicar as atividades em suas cidades. Por conta disso, em 2016, a ONG Unidos pelo Diabetes foi fundada para profissionalizar a gestão do projeto e a transmissão do know-how.
Confira abaixo a nossa conversa com Rafael Andrade, presidente da Unidos pelo Diabetes.
Revista Universo Visual: Quais as principais conquistas da Campanha Novembro Azul em Itabuna até aqui?
Rafael Andrade: O que eu percebi foi o envolvimento da cidade. A gente começou quando eu vi alguns monumentos internacionais ficando azul, o Empire State, a pirâmide do Egito, eu fiquei fascinado com aquilo e eu percebi que com toda aquela simbologia do círculo azul a gente podia mobilizar a sociedade. (…) A gente fez toda uma campanha de mobilização, carta para os síndicos e também para o comércio, pra rádio, pra tv. A gente fazia desfile no shopping com a camisa do círculo azul para que a gente vendesse a camisa, isso era revertido para a associação de diabetes local, a gente não tinha a ONG ainda. (…)
A gente criou uma pedalada azul, tivemos a ideia numa quinta-feira e no sábado a gente fez, tinham 115 ciclistas. Dois, três anos depois, tinham 1500 a 2 mil ciclistas, todos de azul, num verdadeiro mar azul, que passava pelo centro da cidade, além de várias outras ações que a gente via explodindo na cidade como aulas de ginástica, aula de balé fazendo o círculo azul, maçonarias sendo iluminadas, a ordem DeMolay fazendo nos seus rituais com a camisa por dentro e fazendo as manifestações de apoio, universidades participando, campanhas na internet (…).
No início, eu via que as pessoas tinham vergonha de dizer que tinham diabetes, depois de alguns anos as pessoas vestiam a camisa mesmo sem ter diabetes, não só em novembro, mas durante todo o ano. (…) E isso fez com que o novembro azul na cidade fosse diferenciado.
UV: O diabetes traz uma série de consequências para a saúde dos olhos, como a retinopatia diabética, o glaucoma e a catarata. Como isso impacta no dia a dia dos pacientes?
Andrade: O diabetes traz várias consequências para o olho, tendo, claro, a retinopatia diabética como carro chefe. Mas o olho sofre como um todo, desde a flutuação do grau, que é um dos grandes problemas para fazer óculos nesses pacientes(…). Eles descobrem diabetes muitas vezes pela flutuação do grau. E vai uma dica de saúde pública: para fazer a refração, que é o exame do grau, precisa estar com a glicemia controlada, se não o grau fica errado.
[O diabetes também traz] maior probabilidade de ter glaucoma, um glaucoma muito grave que vem nas fases finais chamado glaucoma neovascular, que é perigosíssimo, de difícil tratamento. Infecções também são mais comuns nos olhos, desde blefarites a úlceras, abscessos perioculares. (…) A catarata é a principal causa de baixa de visão, só que reversível, é um problema de saúde pública.
E a retinopatia diabética que é uma doença extremamente grave, debilitante, porque a lesão da retina geralmente tem caráter irreversível. Depois de um certo nível, a perda visual deixa uma sequela muito grande, desde o edema na mácula, que é aquele inchaço na área central, até hemorragias graves e o descolamento de retina (…). Além de ser a maior causa de cegueira, é a maior causa de amputação, (…) falência renal e uma das maiores causas de morte por doença cardiovascular.
Quando você conversa com os pacientes nos mutirões, pesquisa sobre o que eles mais temem, é a visão. Então o oftalmologista é muitas vezes o único médico que o paciente com diabetes grave escuta. Essa interação multidisciplinar, principalmente no paciente que tem retinopatia diabética grave, é muito importante porque, quanto mais grave a retinopatia for, maior a chance de ter complicações em outros órgãos. Pra você ter uma ideia, pacientes com retinopatia diabética grave, a proliferativa, em até cinco anos, 50% podem ir para a hemodiálise, [têm] duas a três vezes mais chances de doença cardiovascular, entre outras complicações associadas. Então a retinopatia diabética é um biomarcador importante de gravidade pra gente pensar em outras complicações. Por isso a importância do exame de fundo do olho periodicamente.
UV: Quais são as ações voltadas para a população que a Unidos pelo Diabetes realiza? Elas acontecem só em novembro ou durante todo o ano?
Andrade: Com a ONG, a gente faz algumas ações de capacitação durante o ano. A gente capacita os estudantes, principalmente os que vão participar dos mutirões de atendimento, estudantes de medicina, enfermagem e de outras áreas. (…) Durante todo o ano, a gente presta assessoria a outras cidades que fazem mutirão. Esse ano perto de 30 cidades fizeram algum mutirão com oftalmologia como carro chefe das campanhas, isso inspiradas e mobilizadas de alguma forma também pela gente.
A gente tem cursos de capacitação também para a rede pública de saúde. Não só para treinar o exame do pé, mas também para treinar a importância do exame do fundo do olho e da classificação da retinopatia diabética para a rede. Isso ajuda muito na interação com a rede na hora dos mutirões e para que a gente realmente consiga, de alguma forma, mudar a vida desse paciente não só nos eventos de atendimento, mas também no dia a dia. (…)
As ações de mobilização como pedalada azul, aulões de ginástica e palestras são uma série de atividades que a gente faz em prol da prevenção do diabetes que realmente são mais concentradas próximo a novembro ou no Novembro Azul. Mas durante todo o ano a ONG trabalha na formatação dessas campanhas, capacitação de profissionais de saúde e ajudando a dar suporte a esses mutirões que vêm se multiplicando por todo Brasil.
UV: Como o oftalmologista deve proceder com um paciente com diabetes para evitar o desenvolvimento ou agravamento dos problemas oculares causados pela doença?
Andrade: O oftalmologista é treinado para ver o fundo de olho, principalmente o especialista em retina, mas todo oftalmologista tem treinamento para poder classificar essa retinopatia diabética e aí, com o rastreio mais precoce, ele pode encaminhar para o especialista em retina e vítreo que é o que geralmente trata esses pacientes com a retinopatia diabética mais grave.
Basicamente o tratamento principal da retinopatia diabética grave é a fotocoagulação a laser, há mais de 30 anos. Mais recentemente, a terapia antiangiogênica, que são drogas extremamente poderosas no combate a uma complicação importante e uma das principais causas da baixa de visão na retinopatia diabética que é o edema da mácula. Essa terapia antiangiogênica são injeções intraoculares com drogas modernas que estabilizam a vasculopatia e fazem com que o edema seja reabsorvido com melhora importante de visão em grande parte dos casos.
O que é importante é esse paciente ser examinado pelo menos uma vez por ano ou, dependendo da gravidade, com uma periodicidade mais curta. O início do exame, no diabetes tipo 2, [deve acontecer] no diagnóstico, porque já existe um atraso no diagnóstico do diabetes de cinco a sete anos. Geralmente, 21% dos pacientes diabéticos já têm algum grau de retinopatia diabética no diagnóstico de diabetes por conta desse atraso, por ser uma doença silenciosa. O diabetes tipo 1, que é o da criança, geralmente a gente espera cinco anos para começar a examinar periodicamente.
Outra coisa é que os casos muito graves vão para cirurgias retinianas, que são casos mais complexos, geralmente têm sequela maior, apesar de que as cirurgias vêm melhorando muito. (…)
UV: A Unidos pelo Diabetes também oferece suporte a médicos oftalmologistas e outros profissionais da saúde. Quais são as atividades voltadas para esse público?
Andrade: A Unidos pelo Diabetes treina esses oftalmologistas que querem fazer campanhas ou mutirões em suas cidades através de um protocolo de atendimento multidisciplinar. A gente ensina todo o nosso fluxo de atendimento, mas também como interligar com outras especialidades, organizar todo o processo, captar recursos, como trabalhar identidade visual dessas campanhas para envolvimento da cidade, da comunidade. Tem todo um projeto de transmissão de know-how pra que a gente consiga realmente aumentar o poder de educação, de rastreamento dessas complicações não só do olho, mas também capitaneando o rastreamento de complicações de outros órgãos, como cardiovasculares, nefrológicas ou o próprio pé diabético que é a maior causa de amputação que existe.(…)
A gente vem desenvolvendo também, com a pandemia, um outro processo que é utilizar em campanhas todo um sistema de telemedicina, o diagnóstico do fundo do olho à distância. Esse ano a gente até inovou, começando a utilizar como piloto um algoritmo de inteligência artificial, para agilizar na separação dos casos graves. Então, essas técnicas de rastreio e também de formatação dessas campanhas é o que talvez seja o nosso maior valor no apoio ao oftalmologista para que eles façam a diferença na sua cidade, para tentar lutar contra essa doença tão incapacitante que gera um custo muito alto para a nossa sociedade.
UV: Sobre o uso de telemedicina e inteligência artificial, você pode comentar mais sobre os processos?
Andrade: Esse aparelho se chama Eyer, é um aparelho da Phelcom, que é uma empresa de São Carlos. Com esse aparelho a gente consegue fotografar e isso vai para uma nuvem (na hora ou depois, em locais sem internet) e o especialista que tá em qualquer lugar do Brasil ou do mundo pode laudar e orientar com relação à necessidade ou não de tratamento. Geralmente fazemos duas fotos por olho, uma central e uma lateralizada. Com isso, segundo estudos já feitos no Brasil, a gente consegue pegar mais de 90% dos casos de retinopatia diabética, quando presente. Como é um aparelho mais barato, a gente consegue ter acesso mais fácil e é portátil, é quase um celular na verdade. Funcionou super bem, bem prático, e a gente consegue fazer os laudos e orientar a rede básica do lugar ou a instituição que está lá recebendo esse paciente local quanto ao encaminhamento ou não para um centro de referência.
UV: E como foram os resultados?
Andrade: Eles desenvolveram um algoritmo de inteligência artificial que consegue identificar as lesões na hora da foto formando um mapa de calor e dando um score de probabilidade de necessidade de encaminhamento. A gente criou uma estrutura chamada VAR, que nem o VAR do futebol, (…) a gente botou como se fosse Verificação de Alterações Retinianas. O problema do algoritmo é que ele consegue separar os pacientes normais dos alterados, mas não consegue diferenciar se aquela alteração é da retinopatia diabética ou de alguma outra alteração retiniana. Se der alterado, na mesma hora da foto forma um mapa de calor onde tá alterado e dá um score de probabilidade de encaminhamento. Formando o mapa e dando um score acima de 70%, a gente encaminha para um médico de retina que está no VAR (…).
Funcionou super bem. Claro que todos os pacientes são revisados. Os pacientes que deram normais realmente foram normais ou tinham alteração muito discreta e não precisariam de encaminhamento. Então a IA não deixou passar nenhum paciente. Ele só não consegue diferenciar que tipo de alteração é aquela, se é retinopatia diabética, uma degeneração de mácula ou outra doença. Então para o nosso fluxo, foi extraordinário.
UV: De que forma a pandemia tem afetado as atividades?
Andrade: A pandemia afetou bastante. Imagine os mutirões do diabetes de Itabuna que tinham 7, 8, 10 mil pessoas juntas numa manhã, um evento gigante com dois mil pacientes sendo atendidos numa linha de montagem grande com mil voluntários. Então, quando veio a pandemia, ainda mais no ano passado, no seu auge e sem vacina, foi muito difícil pensar em alguma coisa. Só que a gente não podia deixar os pacientes para trás. Criamos um modelo com readequação, com os protocolos sanitários realmente bem rigorosos. A gente fez provavelmente a primeira campanha de atendimento do mundo, talvez, do Brasil com certeza, em plena pandemia.
Em vez de fazer demanda aberta, a gente mudou de lugar, foi para um lugar isolado. Os pacientes (…) foram convidados pela rede pública de saúde. Os pacientes eram cadastrados, vinham (…) em grupos com horários marcados, diferenciados, para que a gente não atendesse de vez, com todo o distanciamento, fazendo toda a barreira sanitária.
Em vez de atender todo mundo no mesmo dia, dividimos em duas fases. Na primeira fase, a gente fez uma triagem através do exame de fotografia. Ao invés de trazer vários médicos para cá, trouxemos aparelhos portáteis que faziam a fotografia do fundo do olho e jogavam para a nuvem e, pela internet, os médicos laudavam esses exames que iam pra rede, pra gente fazer a seleção dos casos que eram casos graves. Os pacientes faziam o exame do pé diabético, também com distância de mais de um metro, com todos os EPIs. Dos resultados do olho e do pé, a gente selecionava os casos graves para vir numa segunda fase já para realizar o exame presencial do fundo do olho, o tratamento do laser, o exame do rim e do coração. (…) Foi uma forma que a gente desenvolveu para conseguir atender um número significativo de pacientes, mas com toda a segurança possível. Isso a gente fez ano passado.
Agora, com a vacinação mais avançada, a gente estimulou a multiplicar de novo campanhas e mutirões em todo o Brasil, a maioria usando esse novo modelo com fotografia, com menos gente examinando e com distanciamento, utilizando a telemedicina como apoio durante essa fase de pandemia. Essas tecnologias vieram para ficar, vão realmente ajudar a gente conseguir levar tecnologia para lugares de difícil acesso, onde não tem especialista perto, mas que pode estar à distância ajudando. Então isso foi um grande ganho durante a pandemia.
UV: O senhor mesmo comentou sobre como a telemedicina pode ajudar as campanhas alcançarem regiões mais afastadas ou com poucos recursos médicos. Nesses casos, como em cidades pequenas que contam com poucos profissionais, qual é a estrutura mínima para realizar uma campanha de conscientização? Você acredita que é um modelo replicável para todo o país?
Andrade: Teoricamente dá pra fazer em qualquer lugar. Você treina o técnico e você tem toda uma campanha. Nós estamos falando só da telemedicina, mas você tem também toda uma parte de orientação, de glicemia, de avaliação de pé, uma série de coisas que profissionais treinados numa caravana podem fazer. E se for só o olho, basta você mandar um fotógrafo treinado e um centro de leitura para receber e mandar todos os fluxos de encaminhamento para tratamento em centros de referência. Então tudo isso é possível.
Pra você ter uma ideia, um dos pesquisadores que trabalha junto comigo, o Fernando Malerbi, depois do mutirão aqui dois anos atrás, ele foi para uma tribo no Mato Grosso de índios Xavantes que tinham muito diabetes. Ele, mais um professor da endocrinologia e um professor da Escola Paulista ficaram numa tribo mesmo, isolados do mundo, fotografando aquela população indígena que, por conta da mudança do estilo de vida, ficaram com um índice muito mais elevado que o normal de diabetes. Então, lugar mais isolado que esse não existe.
UV: Pela sua experiência, quais as principais barreiras que impedem a ampla conscientização e prevenção do diabetes?
Andrade: Pela minha experiência, uma das principais barreiras é a própria desigualdade social. [O diabetes] é uma doença muito complexa, silenciosa, muito voltada ao estilo de vida. A cada dez pessoas, uma tem diabetes e 50% ainda não sabe, é uma média mundial. É uma doença que cresce exponencialmente porque é ligada a esse estilo de vida acelerado que a gente tem cada vez mais. Quando você une isso a um índice alto de falta de acesso a melhor medicina, falta de cultura, às vezes falta de estrutura médica acessível em grande parte do Brasil, principalmente no interior, realmente fica muito difícil de lidar com esse tipo de doença, que às vezes o paciente passa anos e nem acredita nela, que ela existe. Sem contar que é uma doença que atinge vários órgãos, então isso acaba sendo como se fosse um ataque fulminante em várias frentes, isso deixa tudo mais difícil.
Por isso que a educação, a mobilização com a realização dessas campanhas, eu acho que é uma das armas importantes que pode, de alguma forma, tentar amenizar o sofrimento dessas pessoas, principalmente trazendo algum tipo de iluminação para a vida dessas pessoas, para que conheçam a doença e lutem em busca de algum nível de acesso para evitar essas complicações tardias que são extremamente graves.
Fonte: Revista Universo Visual