Alberto Sumitomo – Preceptor da Seção de Catarata do Departamento de Oftalmologia da Santa Casa de São Paulo
Fabio Ursulino – Fellow em Catarata na Santa de São Paulo e em Glaucoma na EPM/Unifesp; Mestrando em Oftalmologia na Universidade de Edimburgo
Richard Hida – Departamento de Oftalmologia da Santa Casa de São Paulo; Departamento da USP; Departamento de Oftalmologia da Unifesp
A ausência de mitose, in vivo, das células endoteliais da córnea (ou no máximo uma replicação muito lenta incapaz de manter a população celular ao longo do tempo) permanece como um dos grandes mistérios da oftalmologia. Por que as células do epitélio corneal se replicam rapidamente, enquanto as células endoteliais pouco/não se replicam? Continuamos sem uma resposta para essa pergunta. Apesar disso, talvez tenhamos encontrado uma solução para o problema. Ou melhor, o Dr. Kinoshita e sua equipe, grandes estudiosos da fisiologia endotelial, encontraram.
O endotélio nada mais é do que uma fina camada única de células poligonais que recobrem a membrana de Descemet (Figura 1) e está em contato com o humor aquoso; sua principal função é manter a transparência da córnea através da regulação osmótica pelas bombas Na/K ATPase. O exame de referência para o estudo do endotélio é a microscopia especular, com o qual é possível fazer a análise quantitativa e qualitativa (tamanho e morfologia das células).
Figura 1: Da esquerda para direita: mosaico endotelial normal; células endoteliais aumentadas (polimegetismo) e com alteração em seu formato hexagonal (pleomorfismo), resultando em redução na densidade endotelial; presença de excrescências de Descemet (guttas) no mosaico endotelial em distrofia de Fuchs.
Estudos mostram que procedimentos cirúrgicos promovem dano endotelial médio de aproximadamente 24% do número de células (Figura 2), com perda maior quando há trauma direto ao endotélio e menor quando há proteção com bolha de ar e uso de materiais viscoelásticos. Cirurgias refrativas como LASIK e PRK não estão relacionadas com perda endotelial.
A densidade endotelial é considerada normal acima de 2.000 céls./mm2 e crítica abaixo de 750 céls./mm2. A principal doença endotelial é a ceratopatia bolhosa (Figura 3), caracterizada por edema corneal estromal acompanhado de bolhas subepiteliais devido à perda de células endoteliais ou defeitos nas junções celulares. O tratamento de escolha são os transplantes de córnea: penetrante (camada total da córnea é substituída), DMEK (remoção da Descemet e substituição por endotélio do doador) e DWEK (remoção da Descemet sem substituição do endotélio do doador).
Figura 2: Aspecto do mosaico endotelial em diferentes regiões da córnea após cirurgia de facoemulsificação. Cortesia do Dr. Fernando Abib.
Figura 3: Ceratopatia bolhosa: densidade endotelial estimada de 640 céls./mm2 com paquimetria de 638 µm. Note as células endoteliais de grande tamanho (polimegetismo) com aumento do núcleo ao centro de cada célula. Cortesia do Dr. Fernando Abib.
Em artigo recentemente publicado na cobiçada revista médica New England Journal of Medicine, que raramente tem publicações oftalmológicas em seu conteúdo, o Dr. Kinoshita apresentou os resultados da sua pesquisa: a injeção de células endoteliais humanas cultivadas associadas a um inibidor da ROCK (Rho-associated protein kinase) para o tratamento de ceratopatia bolhosa. ROCK (Rho kinase) é uma enzima que “controla uma série de eventos celulares em condições patológicas. Quando a ROCK é inibida, intensifica proliferação celular, promove adesão celular e suprime apoptose. Existem também relatos de melhora da transparência e densidade endotelial em uso de inibidor de ROCK tópico. Neste caso, a medicação utilizada foi o ripasudil (Glanatec, Kowa, Japão). Outros inibidores de ROCK também estão em estudo.
Onze pacientes apresentando ceratopatia bolhosa com espessura corneal acima de 630 µm e acuidade visual com melhor correção pior que 20/40 foram selecionados para o estudo. O experimento foi desenvolvido da seguinte maneira: células endoteliais retiradas de uma córnea doadora sadia foram cultivadas em meios específicos e suplementadas com inibidor da ROCK Y-27632. Durante o procedimento cirúrgico, uma agulha de silicone foi utilizada para remover a matriz extracelular e células endoteliais degeneradas em uma área de 8 mm de diâmetro no centro da córnea e, imediatamente após, as células cultivadas foram injetadas na câmara anterior. Após o procedimento, os pacientes eram posicionados em decúbito ventral por três horas para melhorar a adesão das células injetadas.
Após 24 semanas, todos os olhos (11) obtiveram melhora da densidade endotelial central, com 10 apresentando densidade acima de 1.000 céls./mm2 e 6 acima de 2.000 céls./mm2. Uma espessura corneal abaixo de 630 µm foi alcançada em 10 dos 11 olhos e melhora da acuidade visual de duas linhas ou mais em 9 dos 11 olhos. Não se observou uveíte anterior ou reações imunológicas em nenhum dos olhos. Um dos 11 olhos apresentou aumento da pressão intraocular após 8 meses da injeção, mas os autores classificaram o caso como glaucoma corticogênico pelo tempo de apresentação e ausência de alterações em malha trabecular. Em seguimento posterior de dois anos após a injeção, 10 dos 11 olhos apresentavam espessura abaixo de 600 µm, com transparência corneal mantida em todos os olhos.
Algumas dúvidas, todavia, permanecem. Já existem estudos demonstrando a eficácia da descemetorrexe sem transplante endotelial no tratamento da distrofia de Fuchs, inclusive associando-se o procedimento aos inibidores da ROCK. Logo, será que as células injetadas realmente refizeram a população endotelial ou a descemetorrexe promoveu a migração das células periféricas (Figura 4), favorecida pelos inibidores da ROCK, para a região central, refazendo essa população? O estudo avaliou apenas a densidade endotelial central. Talvez uma análise das células da periferia pudesse nos ajudar nesse esclarecimento, já que a descemetorrexe isolada tende a funcionar apenas quando temos uma boa reserva endotelial na periferia, especialmente na região superior da córnea. Apesar disso, 6 dos 11 olhos estudados alcançaram uma densidade endotelial central maior que 2.000 céls./mm2, o que seria muito difícil de alcançar apenas com a migração celular, favorecendo a ideia do estudo.
Figura 4: Fuchs – microscopia especular de contato avaliando área central (foto superior à esquerda), média-periferia (foto superior à direita) e periferia superior (foto inferior). Note a preservação da periferia superior em relação ao centro, quadro comum entre os pacientes com distrofia de Fuchs. Esse seria um caso em potencial para descemetorrexe sem transplante endotelial. Cortesia do Dr. Fernando Abib.
Outro ponto pertinente foi levantado pelo estudo. A quantidade de células endoteliais injetadas é muito maior do que o aumento na população celular alcançado em qualquer dos casos. Assim, pode-se supor que boa parte das células injetadas foi eliminada através da rede trabecular, com algumas alcançando a circulação sistêmica. Desse modo, existe um risco teórico de formação de tumor ectópico a partir dessas células cultivadas, porém isso não foi observado em nenhum dos pacientes. Mais estudos, com uma maior quantidade de pacientes e um tempo maior de acompanhamento, são necessários para elucidar essa dúvida.
Apesar dos pesares, o resultado desse artigo abre de vez a porta da regeneração endotelial e do cultivo celular na oftalmologia, trazendo perspectivas cada mais vez mais empolgantes. Imagine um futuro em que a fila para transplantes de córnea nos bancos de olhos seja praticamente nula, pelo fato de uma única córnea doada poder fornecer material para múltiplos receptores. Imagine um futuro em que outras estruturas do olho ou do nosso corpo possam ser regeneradas com um risco mínimo de rejeição. Esse futuro está mais próximo do que você imagina.
Fonte: Universo Visual