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Em 25 de maio, no Hospital Albert Einstein, foi realizada a primeira cirurgia de terapia gênica da América Latina. Na ocasião, foi feita a aplicação da medicação Luxturna® (voretigene neparvoveque) utilizada para tratar pacientes com degeneração na retina provocada por mutações no gene RPE65. Este é o primeiro produto de terapia gênica registrado no país e, além de representar um marco histórico, determina o início de uma nova fase rumo à viabilização do acesso a esse e aos futuros tratamentos para as outras doenças hereditárias da retina. 
A equipe médica que realizou a cirurgia foi coordenada por Juliana Sallum – médica oftalmologista, geneticista e professora do departamento de oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – e contribuiu também para a aprovação da terapia no Brasil, em agosto de 2020, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). A paciente, que tem sido acompanhada pela professora desde 2017, sofria de amaurose congênita de leber, uma doença degenerativa hereditária rara que leva a disfunção da retina numa idade precoce. A equipe médica viajou para a França para realizar um treinamento específico para a condução da cirurgia e também preparou o hospital, que apesar de ser o único no país com a capacidade de atender à equipe com uma farmácia de biossegurança para manipular o vetor viral, também precisou de um treinamento. O procedimento durou cerca de uma hora e o acesso foi feito via judicialização. 
“É muito gratificante. São 30 anos estudando os genes e como eles atuam na retina, correlacionando com diagnóstico e agora finalmente temos uma técnica que consegue corrigir o problema onde ele foi gerado, o (tratamento) mais preciso possível”, celebra Juliana. Até hoje cerca de 200 pacientes foram tratados fora do Brasil (Europa e Estados Unidos) com voretigene neparvoveque, até mesmo por se tratar de uma doença que é rara e porque o paciente precisa estar num ponto tratável da doença para que possa ser submetido ao procedimento. 
Sob medida
Para personalizar o tratamento e possibilitar tratamentos cada vez mais precisos o foco deve ser, mais do que nunca, na humanização. “Não podemos perder o caráter humano de vista, faz parte da ética da medicina. Precisamos estar atentos a isso, especialmente em momentos difíceis como esse que estamos vivendo”, diz Maurício Maia, médico oftalmologista e presidente da Sociedade Brasileira de Retina e Vítreo. “Nada disso faz sentido sem ter os pacientes como meta não tem validade nenhum de nossos estudos , corrobora Huber Vasconcelos, especialista em genética ocular pelo Casey Eye Institute nos Estados Unidos e chefe do setor de genética ocular da UNIFESP.
Outras doenças como a degeneração de macula e distrofias de retina devem ser as próximas a se beneficiar das terapias gênicas por sua característica degenerativa. Conforme Juliana, o impacto deste marco vai além e chega até os estudantes de medicina, visto que se trata de uma possibilidade real e alcançável. “O que não podemos esperar das terapias gênicas é milagre. A visão não volta totalmente, afinal células foram perdidas e sofreram pelo caminho; no entanto, muitas vezes, recobrar parte do que perdeu e até mesmo conseguir impedir uma piora já é um ganho”. 
Técnica de ponta
Mas, afinal, o que são as terapias gênicas? Terapia gênica é uma técnica inovadora que prevê a correção de mutações genéticas a partir da adição, modificação ou supressão de genes defeituosos por genes saudáveis. Sua indicação está ligada, principalmente, a pacientes de doenças genéticas raras. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), para ser considerada doença rara esta deve acometer 65 dentre 100 mil pessoas. Existem de seis a oito mil tipos de doenças raras em geral, sendo que 80% delas têm origem genética. No Brasil há aproximadamente 13 milhões de pessoas com doenças raras.
E já há outras duas técnicas sendo estudadas, além da sub-retiniana utilizada pelo Luxturna. “Tanto a injeção intravítrea quanto a injeção supracoroidal estão sendo avaliadas em estudos clínicos para o delivery de terapia gênica ocular e parecem promissoras, pois poderiam ser realizadas em consultório”, comenta Paulo Falabella, retinólogo, doutor em oftalmologia e ciências visuais pela UNIFESP e vice-presidente de desenvolvimento clínico e operações da Regenxbio Inc., nos Estados Unidos.  
Segundo Juliana, a oftalmologia é uma das áreas que está na vanguarda da terapia gênica, ao lado da neurologia, dos erros inatos do metabolismo e da hematologia. Alguns fatores determinam o porquê do destaque da oftalmologia, contudo. “Desde o acesso direto ao órgão, a habilidade dos cirurgiões oftalmologistas que permite colocar os vetores virais em espaços bem determinados (onde há maior acesso às células que serão transfectadas), o aspecto imunológico do olho, até a correlação clínica e genética das doenças com genes bem específicos”.
Juliana reforça também a questão das doenças com necessidades de tratamento não atendidas e a existência de modelos animais que permitem possam testar antes de seguir para o teste em humanos. “Uma das causas para que o RPE65 tenha sido o primeiro é porque existiam estes animais com alteração nesse gene em específico. Ainda: a proteína codificada pelo gene é uma enzima e esta é mais fácil de repor que um gene estrutural”, diz Juliana. 
 
Dentre os alunos e integrantes da equipe de Juliana estão Vasconcelos e também Mariana Vallim Salles, médica oftalmologista e doutora em oftalmologia pela UNIFESP, que participou da parte clínica da pesquisa que evoluiu na primeira cirurgia realizada no Brasil e na América Latina. “Acompanhamos todo o processo de implantação e aprovação do Luxturna no mundo, todos os protocolos e certificações que foram realizados, até mesmo os regulatórios, durante os últimos anos e até agora”. 
Para Vasconcelos nada nesse momento é tão promissor na medicina quanto tratamento que envolvam as terapias gênicas em todas as suas formas de abordagem. “Com a diminuição do preço dessas terapias no futuro, esses tratamentos poderão vir a ser utilizados para doenças mais prevalentes e não somente monogênicas, como a degeneração macular relacionada à idade (DMRI), que são doenças de causa multifatorial”, prevê o especialista. 
Hoje, após décadas de pesquisa e desenvolvimento – contando inclusive com a descoberta e sequenciamento do genoma humano – é possível afirmar que estas têm sua segurança e eficácia cada vez mais estabelecidas. “O direcionamento das pesquisas, a evolução dos conceitos éticos e da legislação de cada país, ela foi tornando a terapia gênica de fato no tratamento das doenças. Cada vez mais as questões de biossegurança vêm sendo respeitadas em todo mundo e isso não é diferente aqui no Brasil”, comenta Maia. 
“A terapia gênica é uma tendência irreversível. Venho trabalhando em junto ao corpo diretivo da Sociedade, e em parceria com as entidades e órgãos responsáveis, ONGs e também com a indústria para viabilizar o acesso a esse tipo de tratamento para um maior número de pessoas. Além disso, precisamos seguir qualificando nossos centros para que estejamos preparados para as demandas futuras, pois elas virão”, conclui Maia. 
Um time multidisciplinar faz parte da equipe, com perfil amplo, mas que seja dedicado à pesquisa e inovação. É importante lembrar também que o contato com doenças raras é singular e pode levar tempo, o que requer uma habilidade comportamental especial e focada à humanização do paciente também. “Agora estamos pesquisando terapias para coroideremia e já tivemos um paciente operado , comemora Juliana. De acordo com a especialista, há aproximadamente mais 15 genes em fase clínica de pesquisa, usando diferentes técnicas, como oligonucleotídeo antisense e CRISPR. Esta última utilizada com exclusividade pela oftalmologia. 
Cenário brasileiro
E o caminho para que a terapia gênica prospere e se consolide no Brasil vem justamente do trabalho em conjunto entre os mais diversos profissionais da saúde, segundo Maia. “Não é possível que o cirurgião ou que o clínico, somente, detenham este tipo conhecimento. Precisaremos de farmacêuticos, por exemplo. No Brasil temos condições de ter equipes multidisciplinares em todas as regiões do país. Grandes descobertas e contribuições para a oftalmologia tem vindo do Nordeste”, diz.  
“Sou um grande entusiasta da pesquisa brasileira, nossa capacidade intelectual é imensa. Mas é necessário diminuir esse gap entre o Brasil e os demais países e polos de desenvolvimento do mundo. Para sermos um hub como Boston ou Israel precisamos fomentar ainda mais a pesquisa nacional, deixar de ser consumidor para desenvolver as terapias em si”, aponta Falabella. 
Maia complementa que é necessária também a integração entre a academia, a indústria e as sociedades médicas. “A partir do momento em que essa parceria existe, o paciente é o grande beneficiado. Por muitos anos no Brasil o capital privado e a relação indústria-academia não eram vistos com bons olhos. Já nos países desenvolvidos acontecia o oposto. Essa relação, se feita de forma harmônica e, sobretudo, ética, possibilitará um salto de desenvolvimento tecnológico científico para nosso país. Às sociedades, cabe o olhar social, tão importante nesse momento”. 
Segundo o Ministério da Saúde, atualmente existem no Brasil cerca de 240 serviços que oferecem ações de assistência e diagnóstico. No entanto, por se tratarem de doenças raras, muitas vezes elas são diagnosticadas tardiamente. Além disso, os pacientes geralmente encontram dificuldades no acesso ao tratamento. Assim, promover uma maior conscientização e investir em ensino, pesquisa e desenvolvimento tecnológico – por meio inclusive de healthtechs, por exemplo – neste segmento se mostram determinantes para sua evolução. Há que ser reforçada também a importância da identificação e diagnóstico precoces, a partir do teste do pezinho logo no nascimento, por exemplo, bem como na ampliação do acesso aos exames de mapeamento genético, hoje já oferecidos em diversas clínicas privadas do país. 
Como a terapia gênica também está revolucionando outras áreas da medicina
Em agosto de 2020 outra terapia gênica também foi aprovada no Brasil, essa para o tratamento de pacientes de até 2 anos com atrofia muscular espinhal (AME). O procedimento compensa a falta do gene do neurônio motor de sobrevivência funcional 1 (SMN1), que leva à perda progressiva dos neurônios responsáveis pela respiração, deglutição e locomoção, entre outros. Sem o funcionamento correto desse gene, crianças com AME perdem neurônios motores responsáveis pelas funções musculares.
A terapia gênica fora do Brasil
Recentemente, em Simpósio da Novartis sobre Terapia Gênica na 45ª edição do congresso BRAVS Meeting, a convidada internacional Selwa Al-Hazza (chefe do departamento de oftalmologia do King Faisal Specialist Hospital), da Arábia Saudita, compartilhou sua vivência nessa área. A médica falou sobre sua perspectiva otimista para o futuro, especificamente com relação às doenças genéticas advindas das uniões consanguíneas – ainda uma constante cultural em seu país. Com um relato emocionante, de uma criança que teve sua vida transformada pelo diagnóstico e condução corretos, evidenciou as barreiras vividas na região – passando inclusive pela necessidade de negociar com a alfândega para que não violassem as embalagens para inspeção de rotina até a manutenção da temperatura dos medicamentos a – 80ºC, por exemplo. Comentou ainda sobre a questão da avaliação precisa e do encaminhamento adequado deste tipo de paciente, pois seu diagnóstico é muito complexo e merece muito cuidado. Encerrou dizendo que as evidências de sucesso a partir do uso de voretigene neparvoveque abrem oportunidade para as possibilidades terapêuticas de outras doenças também muito comuns no Oriente Médio, como Stargardt e a síndrome de Usher. 
Parceria para acesso ao diagnóstico
A Casa Hunter e o laboratório de genômica GeneOne fecharam parceria com o objetivo de viabilizar acesso ao diagnóstico a pacientes com doenças raras. Para mais informações, basta enviar um e-mail para: [email protected]

Terapia Gênica para Distrofia Hereditária da Retina relacionada ao gene RPE65 foi realizada pela primeira vez na América Latina

“Em Maio de 2021 conseguimos tratar o primeiro paciente com terapia gênica para Distrofia Hereditária da Retina.  A doença tratada foi a Amaurose Congênita de Leber, uma distrofia de retina da infância na qual o bebê apresenta sintomas como baixa acuidade visual, nistagmo, fotofobia e nictalopia. 
Dentre os pacientes com Amaurose congênita de Leber alguns têm a doença em decorrência de mutações patogênicas bialélicas no gene RPE65. Este gene codifica uma proteína do ciclo da vitamina A. Quando mutada, essa proteína perde sua ação enzimática, o ciclo visual não funciona de forma adequada e a retina degenera progressivamente. Nos casos de Leber relacionados ao gene RPE65 não ocorrem manifestações sistêmicas, pois o gene tem expressão na retina.
Alguns casos não tem sintomas tão evidentes no primeiro ano de vida e acabam sendo identificados na infância com o diagnóstico de retinose pigmentar. São doenças ultrarraras progressivas que causam cegueira em faixa etária jovem e até o momento não tinham nenhum tratamento. 
Recentemente o medicamento denominado Voretigeno neparvoveque, de nome comercial  Luxturna®, foi aprovado pela Anvisa para terapia gênica de adição deste gene RPE65. Trata-se de um adenovírus associado que serve como vetor para o transporte do gene RPE65 para a célula alvo da retina. 
O diagnóstico genético molecular é importante para identificar os subtipos da Distrofia de retina. Os testes mais usados são os painéis de sequencialmento NGS, que sequenciamgrande quantidade de genes em um só exame. Os pacientes elegíveis devem ter as duas cópias do gene RPE65 com variantes patogênicas, isto é, que tenham relação causal com a doença. Para que o tratamento tenha possibilidade de melhora visual é necessário também que existam células ainda viáveis na retina, pois elas serão alvo da transfecção. 
Uma parceria entre a UNIFESP e o Hospital Albert Einstein viabilizou o tratamento deste primeiro paciente. A equipe liderada por mim trabalhou com o Dr. José Mauro Kutner para que fosse possível preparar esta medicação em condições ideais de biossegurança, já que se trata de um vetor viral. 
A cirurgia necessária para aplicação do voretigeno neparvoveque é uma vitrectomia via pars plana. O Dr. André Maia e o Dr. Huber Vasconcelos foram convidados a participar da cirurgia deste primeiro caso.  
A medicação foi preparada em ambiente de biossegurança adequado no Banco de Sangue do Einstein e entregue na sala de cirurgia no momento exato de sua utilização.
Foi realizada injeção subretiniana da medicação com uma microcânula criando um bolsão de descolamento de retina que englobava a área macular. 
A cirurgia foi realizada em o sistema Ngenuity. A imagem 3D propiciou boa visibilidade para a injeção subrretiniana. Essa tecnologia foi muito didática no ensino da nova técnica para os demais participantes do procedimento.
O treinamento prévio de toda a equipe e a destreza e preparo de todos os cirurgiões envolvidos permitiu o transcorrer perfeito do procedimento. Os dois olhos foram tratados com intervalo de uma semana.
A equipe do Setor de Genética Ocular da UNIFESP esteve presente e comemorou essa nova possibilidade de tratamento. Estivemos por anos estudando e publicando a respeito de epidemiologia da Amaurose congênita de Leber no Brasil inclusive com publicações sobre história natural de casos relacionados ao gene RPE65 e sobre a análise genética destas famílias.  
A retina aplanou já no primeiro dia pós-operatório de cada um dos olhos e em poucos dias a presença do gene RPE65 na retina permitiu que a síntese dessa proteína restaurasse o ciclo visual e melhorando a capacidade visual funcional do paciente. 
Esse procedimento altera a história natural da doença que inexoravelmente evoluiria para a cegueira. Certamente um grande avanço da medicina.”
Profa Dra. Juliana M. Ferraz Sallum, Professora Afiliada do Departamento de Oftalmologia da UNIFESP.

Fonte: Revista Universo Visual

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