Por Flávia Lo Bello
A ciência da implementação é uma abordagem de pesquisa que utiliza métodos para otimizar a operacionalização de políticas e intervenções. Ela faz uso de teorias e metodologias quantitativas e qualitativas para conhecer o contexto de aplicação de uma prática de saúde que podem ser empregadas para guiar o desenho da intervenção, implementação e disseminação e, posteriormente, avaliar a penetração e sustentabilidade da prática de saúde. Como os contextos estão sempre se modificando, a ciência da implementação sempre terá novas questões de pesquisa para investigar.
Marcia Scazufca, psicóloga, epidemiologista e pesquisadora científica do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/FMUSP
A psicóloga Marcia Scazufca, epidemiologista e pesquisadora científica do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/FMUSP, revela que a ciência da implementação se insere na área de investigação de “Melhorias nos Cuidados de Saúde” e tem por objetivo entender COMO transformar práticas de saúde baseadas em evidência em práticas de saúde efetivas e sustentáveis no mundo REAL. “O grande problema da implementação destas práticas é que o mundo real é imenso, variado e possui barreiras e facilitadores que influenciam o processo de implementação das práticas de saúde”, explica a especialista, citando como exemplo os municípios, ou mesmos regiões distintas de um município, que podem ter características distintas. “E estas diferenças influenciam e tornam complexa a implementação das práticas de saúde”, completa.
Segundo o oftalmologista Paulo Schor, professor associado Livre Docente da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP, a ciência da implementação é uma área que trabalha com soluções; no caso da saúde, soluções que são baseadas em evidência cientifica, ou seja, já incorporadas à prática clínica médica, porém ainda sem utilização em larga escala pela população. E existem várias estratégias para isso acontecer. “Na ciência da implementação, essas estratégias são denominadas de Frameworks, ou modelos, e existem inúmeros, mais de 100 modelos, cada um servindo para uma situação e um entendimento mais profundo de como utilizá-los”, afirma. Um desses Frameworks é o RE-AIM (Reach, Effectiveness, Adoption, Implementation and Maintenance), cujas iniciais significam alcance, eficácia, adoção, implementação e manutenção. O oftalmologista explica que o RE-AIM abarca várias das questões de como e por que os processos já baseados em evidência não são implementados na prática clínica.
Outro modelo interessante de Framework, apontado por Schor, é o COM-B – Capacidade, Oportunidade e Motivação (e B de Behavior/ Comportamento) – e, com base nas duas ferramentas, o RE-AIM e o COM-B, é possível tratar vários problemas da saúde visual como um todo. “Um deles que me chama a atenção é a efetiva utilização das lentes e lasers para modificação do estado refracional dos pacientes”, esclarece o especialista, ressaltando que isso inclui a subutilização, uma vez que o mercado é muito maior em comparação ao que se tem acesso atualmente de cirurgias refrativas. “E atualmente existe um mercado crescente de implante de lentes intraoculares, que proporcionam boa visão para várias distâncias”, complementa o médico.
Ele declara que a cirurgia refrativa é realizada com o objetivo de diminuir a dependência do uso de óculos ou lentes de contato, seja para perto ou para longe, sendo estes procedimentos ultra eficazes, efetivos, seguros, previsíveis e estáveis. “Mas por que eles não são adotados em larga escala? Por que as pessoas têm medo? Então vamos mudar o comportamento das pessoas. Ou será por que as pessoas não têm a informação? Então vamos dar acesso à informação. Ou por que não tem pessoal capacitado? Então vamos trabalhar na capacitação profissional”, pontua o cirurgião.
Desafios na implementação de intervenções médicas em larga escala
Paulo Schor, professor associado Livre Docente da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP
Paulo Schor revela que todos os pontos descritos no RE-AIM e no COM-B podem ser misturados para apontar atitudes e projetos que aumentem a adoção e implementação de procedimentos. “Como por exemplo, na cirurgia refrativa e de catarata, mas existem inúmeros outros”, diz. Outro exemplo possível de aplicação da ciência da implementação, conforme explica o oftalmologista, é a adoção de doses mais altas de fator antiangiogênico (anti-VEGF) intraocular, um procedimento já baseado em firmes evidências clínicas, mas ainda de baixa implementação. “Existe uma dificuldade de uma aplicação mais ampla desse medicamento com dose maior no lugar daquele com dose menor. E isso acontece por inúmeras explicações, como por exemplo receio dos pacientes, não esclarecimento do procedimento e consequente desconfiança”, avalia o especialista.
Por isso, segundo o professor, há de se trabalhar em estratégias que mudem o cenário e o comportamento frente aos achados que restringem a sua implementação. É preciso ter ações de divulgação, passando por conhecimento dos médicos, convencimento dos pacientes e modos de remuneração. Ele afirma que o mapeamento de todas essas funções e a proposição baseada no COM-B de ações que aumentem a implementação desse tipo de intervenção são exatamente as características e os objetivos da ciência de implementação. “No Brasil, a pesquisa em ciência da implementação é relativamente restrita e recente, mas em diversos países pelo mundo afora essa ciência tem cerca de 15 anos de existência”, destaca.
Contudo, ele observa que existem grupos muito atuantes na ciência da implementação, um deles na própria UNIFESP, ligado a Escola de Enfermagem, e outro grupo na FAPESP, que atua junto a uma iniciativa chamada GACD (Global Alliance for Chronic Diseases/Aliança Global para Doenças Crônicas). “Esperamos que essas ferramentas sejam mais entendidas e mais utilizadas, porque não só fazem parte da formatação de políticas públicas eficientes como também trazem mais impacto para a sociedade, no sentido de haver um desenvolvimento e uma aplicação e implementação, além de uma utilização mais efetiva dessas tecnologias”, opina Schor.
De acordo com Marcia Scazufca, nos ensaios clínicos, o principal objetivo é testar a efetividade de uma prática de saúde, sendo que estas práticas podem ser, por exemplo, uma medicação, uma técnica cirúrgica ou uma intervenção comportamental. “O foco da ciência da implementação é entender como implementar práticas de saúde. Ou seja, desenvolver o entendimento de estratégias de implementação efetivas que possibilitem que os programas ou intervenções baseadas em evidências possam ser adotados e sustentados e, consequentemente, colaborem para a melhora dos desfechos de saúde da população”, afirma a pesquisadora.
Para ela, não é novidade que a implementação de práticas de saúde é complexa. “Sabemos que em todos as áreas da saúde as intervenções, práticas e programas desenvolvidos por pesquisadores levam muitos anos para serem implementados ou, muitas vezes, nunca são implementados ou, ainda, são implementados com muitas limitações”, revela, enfatizando que a ciência da implementação tem se tornado uma área de pesquisa em destaque, justamente porque tem a proposta de contribuir para a diminuição deste abismo entre a produção científica na área da saúde e sua aplicação no mundo real, ou para transformar este conhecimento em benefícios reais para a população.
“Por este mesmo motivo, em muitos países os ensaios clínicos passaram a avaliar conjuntamente a efetividade da intervenção e desfechos de implementação, que são aceitação, adequação, viabilidade, adoção, fidelidade, custo da implementação, penetração e sustentabilidade”, continua a especialista, salientando que estes desfechos são avaliados com metodologias qualitativas e qualitativas e respondem questões específicas sobre a implementação das intervenções na fase inicial do seu desenvolvimento ou desenho, ou durante e após a realização do ensaio clínico. “Estes desfechos são avaliados com os atores envolvidos na implementação da intervenção, como profissionais e gestores de saúde ou pacientes e familiares”, acrescenta.
Obstáculos na incorporação de pesquisas científicas na prática clínica
Mauricio Silva de Lima, especialista em estudos de fase III-B/IV, revisões sistemáticas e metanálises, além de CEO e Fundador da Consultoria “Pulsus Consulting”
Na opinião do médico psiquiatra e mestre em epidemiologia Mauricio Silva de Lima, especialista em estudos de fase III-B/IV, revisões sistemáticas e metanálises, além de CEO e Fundador da Consultoria “Pulsus Consulting”, no Reino Unido, existem várias razões que explicam por que os resultados das pesquisas científicas demoram tanto para serem incorporados no cotidiano dos serviços de saúde e pela população, incluindo obstáculos estruturais, institucionais e culturais, o que faz com que esse processo possa levar anos ou até décadas. “Nesse intervalo de tempo, compreendido entre a publicação de resultados de pesquisas científicas até a adoção na prática clínica, ocorre o processo conhecido como ‘pesquisa translacional tipo 2’”, explica.
Já a “pesquisa translacional tipo 1”, de acordo com Lima, que atualmente trabalha com Ciência da Implementação em colaboração com o oftalmologista Paulo Schor, refere-se à conversão do conhecimento oriundo de pesquisa básica até o desenvolvimento de um produto a ser testado em humanos. Ele menciona que esse intervalo de tempo também pode se estender por muitos anos, dependendo da complexidade da doença e molécula estudadas. “Estima-se que entre o momento em que a evidência esteja disponível até sua adoção na prática clínica passam-se, em média, 17 anos. Entretanto, se considerarmos ampla disponibilidade e acesso a todos os pacientes em um determinado sistema de saúde, essa demora pode ser muito maior”, informa o médico.
O psiquiatra diz que o fato de um produto estar aprovado pelas autoridades regulatórias e disponível comercialmente não significa que a geração de evidência clínica de eficácia e segurança possa cessar. Segundo o especialista, estudos pivotais, invariavelmente, precisam ser replicados e validados em múltiplos contextos antes de serem considerados confiáveis. A eficácia precisa ser confirmada fora do universo dos estudos clínicos randomizados através dos estudos de efetividade (estudos no “mundo real”). “Tais estudos podem ser conduzidos a partir da disponibilidade comercial do produto e, geralmente, anos se passam até sua conclusão e publicação”, esclarece, enfatizando que uma vez que os estudos de eficácia (ou efetividade) estejam publicados em periódicos científicos, tem início o processo de disseminação da informação.
“Na realidade, os clínicos não têm tempo de ler todos os periódicos relevantes na sua área de atuação regularmente, sem falar na dificuldade de ler e interpretar estudos publicados em outros idiomas (tipicamente língua inglesa)”, revela Lima. Em geral, de acordo com o mestre em epidemiologia, a indústria farmacêutica comanda esse processo de “educação médica”, e o faz através da utilização de Key Opinion Leaders, médicos geralmente acadêmicos e pesquisadores que são considerados experts na especialidade ou doença em questão. “Os resultados de pesquisas são, então, apresentados em congressos e atividades médicas educacionais diversas, sujeitos a múltiplos vieses e conflitos de interesse. Isso pode tornar os clínicos dependentes da indústria e de seus interesses comerciais”, completa.
Nesse cenário, ele aponta que profissionais de saúde tendem a adotar novas práticas com cautela, especialmente se o novo conhecimento contradiz diretrizes previamente estabelecidas. Essa resistência a mudanças pode se estabelecer na prática clínica por um longo período. “A incorporação da evidência de eficácia e segurança de um produto em diretrizes clínicas pode acrescer confiabilidade e motivar os clínicos a mudar sua prática. Ainda assim, o amplo acesso do produto requer superação de barreiras financeiras e políticas”, avalia, afirmando que implementar novas práticas requer investimentos em treinamento, equipamentos e mudanças estruturais no sistema de saúde.
E mesmo quando o sistema de saúde consegue fornecer novas tecnologias sem custo, frequentemente a infraestrutura existente não comporta a adoção na prática do procedimento. “Em resumo, trata-se de uma jornada complexa, na qual os protagonistas não estabelecem comunicação clara e transparente durante todo o processo de avaliação, que transmite o conhecimento muitas vezes ignorando a realidade clínica e seus desafios (atualização médica, infraestrutura do sistema de saúde, custo de novas tecnologia). A ciência de implementação é ignorada e com isso sofre a comunidade, que padece com essa demora no acesso a tratamento inovadores, mais efetivos e seguros”, conclui Lima.
Importância da Ciência da Disseminação e Implementação
Para mudar o cenário de demora entre a disponibilidade de evidência e uso na prática, o médico psiquiatra Mauricio Silva de Lima, acredita que existam dois componentes essenciais que precisam ser considerados: 1) amplo acesso aos dados de todos os estudos relevantes, incluindo os estudos negativos, associado a capacidade de interpretar a evidência e aplicá-la ao paciente individual; 2) facilitar a comunicação entre todos os protagonistas no sistema de saúde, incluindo autoridades regulatórias, políticas, órgãos pagadores (governo e outros), pacientes e seus representantes, associações médicas, profissionais e serviços de saúde.
“É fundamental que todos esses atores tenham total visibilidade do processo de discussão de aprovação, validação, acesso (reembolso) e disponibilidade real da medicação para a população que dela necessita, mesmo nos lugares mais remotos do país”, opina o especialista. Ele considera, portanto, a Ciência da Disseminação e Implementação fundamental para garantir que o problema da demora na adoção de novas tecnologias em saúde seja solucionado de forma transparente, metodologicamente adequada e efetiva.
Para o psiquiatra, à medida que os sistemas de saúde operam em condições cada vez mais dinâmicas e com recursos limitados, estratégias baseadas em evidências são essenciais para garantir que os investimentos em pesquisa maximizem o valor da assistência à saúde e melhorem a saúde pública. “A ciência da implementação desempenha um papel fundamental no apoio a esses esforços, especialmente em um país com o nosso, que carece de uma perspectiva de equidade para prevenir ou reduzir desigualdades”, finaliza Lima.
Mutirões de catarata: como melhorar os resultados de sua implementação
Marcia Scazufca, da FMUSP, destaca que as práticas de saúde implementadas com sucesso em um local dificilmente serão disseminadas para outros contextos. Isso porque as diferenças nos contextos influenciam COMO e SE as estratégias de implementação, ou o processo de implementação, irão funcionar. “Um exemplo conhecido na área da oftalmologia e que eu entendo que ainda tem muitos problemas de implementação são os mutirões de cirurgia de catarata realizados em todo o Brasil”, pontua.
“A efetividade desta cirurgia para a melhora da acuidade visual e diminuição do risco de cegueira é indiscutível. Porém, os resultados positivos e os eventos adversos destas cirurgias, como cegueira e infecções graves, podem ser muito diferentes nos locais onde se realizam esses mutirões”, avalia a médica. Para ela, certamente estas diferenças estão mais relacionadas às estratégias de implementação do programa do que apenas a problemas relacionados ao ato cirúrgico. “A pergunta que precisa ser respondida é: como melhorar a implementação dos mutirões de catarata e tornar os resultados do programa mais uniformes e benéficos para toda a população que procura este serviço?”, questiona, enfatizando que os mutirões de catarata são muito importantes para a população idosa. “A cirurgia de catarata tem impacto positivo na melhora ou manutenção da acuidade visual, na qualidade de vida e na saúde física e mental dos idosos”, avalia.
Para a psicóloga, seria muito ruim se os problemas de implementação diminuíssem a aceitação do programa. “A implementação de programas ou práticas de saúde que não levam em consideração as barreiras e facilitadores dos contextos locais geralmente não tem bons resultados”, observa. Em relação aos mutirões de catarata, ela diz que os desfechos negativos podem fazer com que, por exemplo, gestores de saúde ou profissionais de saúde ou a população não aceitem participar desses programas futuros nesses locais. “A pesquisa de implementação é uma boa opção para entender como o programa de mutirão funciona, para quem funciona e em quais circunstâncias ele funciona. Este conhecimento poderá melhorar a implementação do programa e consequentemente os resultados da cirurgia na população”, conclui Marcia.