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Paulo Schor – Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Unifesp e Professor Chefe do Setor de Óptica Cirúrgica da Escola Paulista de Medicina.
Deve haver uma razão muito forte para termos demorado esse tempo todo em sair da zona de conforto dos desenhos e entrar na escrita. Foi “somente há seis mil anos, na Mesopotâmia, que a escrita foi documentada. Antes disso já nos comunicávamos e transmitíamos conceitos culturais falados, mas o registro mecânico foi o último a aparecer. Do mesmo modo, repetimos o processo em curto intervalo de tempo, “lendo livros com figuras, até o limite do possível. Somente quando nossos pais, escola ou em geral amigos, nos motivam ou constrangem, partimos para esse esforço hercúleo que é o aprendizado da escrita. A leitura não faz parte da natureza humana!
Por outro lado, interpretar cenas, expressões, luz e sombras, parece estar presente desde os quatro meses de vida intrauterina, com os bebês se voltando para ou contra a luz. Ao ver o sorriso dos pais, a criança sorri. Ao ver o oftalmologista com avental branco, chora. Seriados como “Lie to Me nos relembram quão fantásticos somos em “ler expressões. Será por isso que durante a Faculdade de Medicina preferimos especialidades “visuais ?
Há alguns anos, Radiologia, Oftalmologia, Dermatologia, Ortopedia e Diagnóstico por Imagem estavam tão em alta que havia sistematicamente sobra de vagas nas melhores residências médicas para futuros clínicos e pediatras. Hoje sentimos a falta desses profissionais e o equilíbrio vai se restabelecendo. As palavras (faladas ou escritas) voltam a ser parte essencial do relacionamento médico-paciente, e resgatam o sentido dos exames subsidiários, como os exames de imagem.
É nesse contexto que uma imagem não vale mais que mil palavras, como Confúcio exclamou há 2.500 anos. Hoje pagamos (literalmente) caro por uma medicina baseada em imagens. Inúmeras vezes vemos exames serem tratados e protocolos realizados sem terem como alvo o paciente. A remuneração por serviço (“fee for service ) impulsionou a prática de “pedir exames quase previamente à anamnese, e os resultados são levados em consideração, mesmo na indeterminação de queixas. O ensino médico foi brutalmente subvertido e algumas gerações ficaram à mercê de equipamentos e índices gerados pelos mesmos. Livros e cursos foram desenvolvidos para a interpretação de imagens, e clássicos da propedêutica esquecidos. Não soubemos inovar incrementalmente, e rompemos (inovação disruptiva) um ciclo da formação médica.
Do mesmo modo que os equipamentos passaram a ter um “comportamento e gerar reações como amor ou ódio, os instrumentais (cirúrgicos especificamente) também brilharam, e como Ferraris viraram objeto do desejo de cirurgiões e hospitais. “Pilotos foram treinados em milhares de horas de operação, e a repetição levou à quase perfeição. Hoje temos procedimentos com altíssima repetibilidade e segurança, o que é de inestimável valia para o paciente, mas a um custo histórico e financeiro bem alto. Não se propõe regredir no tempo, e muito menos oferecer uma catarata em 40 minutos com lente rígida, mas o sistema cobra ganho de eficácia!
Nas cirurgias é mais direto o entendimento desse ganho em escala e qualidade, mas no diagnóstico médico a situação é mais complexa. Os equipamentos diagnósticos revelam detalhes impressionantes, mas essa “impressão pode não ser relevante para a maioria dos casos, e máquinas um pouco menos “sensacionais , mas muito mais acessíveis, passam a ser necessárias. A isso se chama também de tecnologia frugal.
Hoje vemos uma tendência aos exames serem realizados quase de modo autônomo, sem o controle pessoal, e às vezes sem o pedido do médico. A verticalização dos serviços de saúde, com eventual pagamento por pessoa (“capitation ) em estruturas profissionalizadas, vai tornar os centros diagnósticos um “luxo , que pode levar o pêndulo de volta à relação médico-paciente mediada por conversa, e não imagens.
Médicos antigos e prosaicos contavam que seu diagnóstico era realizado quando o paciente entrava na porta ou no máximo durante o aperto de mão. O restante da consulta servia para confirmar a suspeita. Os exames complementares deveriam ser pedidos como são as “dicas de uvas já escolhidas. Para se encontrar as nuances de um Merlot. Com um sentido único, direcionado, específico, mas aberto. Os protocolos de exames são, nesse sentido, fadados ao insucesso.
Protocolos são sequências de ações (que incluem exames) a serem sempre seguidas, na vigência de uma queixa determinada. A total homogeneização do atendimento é o sonho dos gestores, que com isso controlariam os custos de cada atendimento. Acontece que se os protocolos forem extensos demais, e aplicados a todos os queixosos, farão a balança tender ao encarecimento do sistema, e se forem leves demais, sem passos suficientes, podem deixar de fora diagnósticos mórbidos para os pacientes. Qual o ponto de equilíbrio do sistema? O bom senso (crítico) e a ótima preparação do médico.
Por isso excelentes Faculdades de Medicina tiveram seu desenvolvimento ligado à pesquisa, onde o exercício da crítica científica (metodologia) é constante. Hoje em dia essa ligação também encarece demais o sistema, e devemos cuidar para que os novos médicos não respondam para a máquina, mas controlem seu funcionamento. O raciocínio clínico deveria ser valorizado como um “dote aprendido ao longo da vida, e comemorado a cada experiência vivida. Nada como uma boa história clínica, que culmine em reais hipóteses diagnósticas e planos terapêuticos. Bem-vinda medicina elementar!

Fonte: Universo Visual

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